Dia 25 de novembro é o Dia Internacional para Eliminação da Violência contra as mulheres. Aproveitamos a data para entrevistar a servidora Alessandra Maria da Silva, agente de Extensão e Desenvolvimento Rural, do Incaper, especialista na área de gênero e tem muito a nos ensinar.
Ela faz parte do Ateliê de Estudos de Gênero (Ategen), vinculado à Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), onde Alessandra concluiu o doutorado em abril deste ano. O Ategen é coordenado pela professora doutora Marinete dos Santos Silva.
Nossa entrevistada também faz parte, desde maio, quando retornou dos estudos para o Incaper, do grupo de trabalho para elaboração do projeto “Elas no Campo e na Pesca: empreendedorismo, liderança e autonomia”. Atualmente, está como gestora operacional do projeto, que é coordenado pela servidora da SEAG Patrícia Ferraz.
Boa leitura!
Assin – Qual a importância do dia 25 de novembro?
Alessandra Maria da Silva – As mulheres sempre estiveram atuantes e na luta pelos seus direitos, mas a história das mulheres sempre foi muito escondida, pois prevalece a história dos homens. No caso do dia 25 de novembro, por exemplo, essa data foi escolhida dentro de um encontro feminista, que aconteceu na Colômbia, em 1981. Na ocasião, a história de três irmãs, chamadas de “mariposas”, todas ativistas políticas e que sempre lutaram contra a desigualdade social e contra a violência do ditador da República Dominicana, até serem assassinadas, foi lembrada durante o encontro. Com isso, a data de 25 de novembro surge para relembrar a luta dessas mulheres e simbolizar a de tantas outras. Até que em 1999, a ONU reconheceu a importância da data e passou a chamar de Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, o que configurou em mais uma vitória ao movimento feminista.
Essas datas simbólicas, vinculadas aos movimentos sociais, são de extrema importância para evidenciar a agenda social e política desses movimentos. Por exemplo, mesmo que se fale sobre a violência contra a mulher durante todo o ano, o assunto fica disperso, sem a devida importância. Dessa forma, o dia 25 de novembro é utilizado para concentrar a discussão sobre o tema violência contra a mulher, quando se reúnem e se apresentam dados e estudos, se realizaram espaços de debates e trazerem visibilidade para esse tipo de agenda, para esse tipo de problema. É um momento importante para trazer à tona o debate sobre a violência contra as mulheres. Porque, quando trazemos o assunto para o debate, busca-se conhecer, por exemplo: “De onde veio a violência?” ou “Por que existe violência contra as mulheres?”.
Trazer o assunto para a discussão, para compreender o processo, traz também outros debates, como o da desigualdade de gênero. Você discute sobre como nossa sociedade foi formada, e que nessa formação a própria sociedade reservou o poder ao homem. É o homem que tem posse sobre os bens e, também, de quem está sobre a guarda dele, como a mulher e os filhos. Quando a sociedade outorga ao homem esse poder, o poder sobre a mulher, a sociedade passa a ser permissiva, também, sobre o que o homem faz com a mulher. A partir desse momento, desse pensamento, a sociedade está “autorizando” o homem a bater na mulher, prender a mulher, regular a forma como a mulher se veste, fala, age, o que pode ou não fazer. Baseia, ainda, a divisão sexual do trabalho, colocando a mulher na condição do trabalho doméstico, tendo que acumular essa função caso queira trabalhar fora de casa, visto que o homem se recusa a fazê-lo. O homem passa a ter todo esse domínio sobre a mulher.
Então, quando se discute a violência contra a mulher, também se discute a desigualdade de gênero. Portanto, é muito importante trazer esse debate, pois a partir daí se discutem propostas que proporcionem a ruptura desse padrão desigual de gênero e com essa tradição do homem ter posse e controle sobre a mulher, ao ponto de dominá-la por meio da violência, seja física, sexual, psicológica ou qualquer outra associada às questões de gênero.
Portanto, a importância desta data está na possibilidade de trazer o debate, compreender o processo e fomentar ações que possam eliminar, de fato, a violência contra a mulher.
A – Por que falar de violência contra as mulheres é tão importante?
A.S. – Como disse, vivemos numa sociedade onde se estabelece qual o papel do homem e o papel da mulher. E, nesse papel, existe o conservadorismo, em especial entre as famílias, tratando como velado e particular o que acontece dentro da família. Nesse caso, o homem é o detentor do poder, o chefe que decide tudo e controla as ações da mulher e dos filhos. São padrões sociais que também são reforçados pelas próprias religiões, e que ainda defendem a necessidade dessa redoma sobre a família.
Só que, na maioria das vezes, a violência contra a mulher ocorre dentro das famílias, seja física, sexual ou psicológica. Nas relações abusivas, a mulher aceita uma condição de subordinação e, por questões morais e religiosas, ainda aceita a violência a qual é submetida. É uma questão muito complexa, mas quando se fala sobre violência doméstica, e apontamos as estatísticas sobre esses casos, abrimos espaço para questionar essas condições. Afinal, isso realmente é normal? É normal a mulher apanhar do marido? Ficar presa em casa? Não poder sair? Não ter sua própria renda? Não poder se realizar como mulher? Ser obrigada a fazer sexo, quando não quer? Ser obrigada a ter filhos, quando não quer? Todas essas questões precisam entrar em debate para que as mulheres ouçam, esclareçam e encontrem canais para se livrar dessa violência doméstica.
Mas não é tão simples. É difícil romper com padrões sociais e religiosos de misoginia e de violência contra as mulheres, que impedem que essas informações cheguem de forma clara e objetiva para contribuir que as mulheres saiam dessas condições. E aos homens, também, para que eles reconheçam que esse padrão é violento, inadequado, arcaico, e que eles podem romper com esse modelo e ver na mulher um ser humano igual e que não deve ser submetido a qualquer forma de violência.
A – Quais possíveis formas de violências podemos encontrar no campo rural, por exemplo?
A.S. – Quando estava fazendo meu doutorado, por exemplo, fui fazer uma pesquisa com assentadas da reforma agrária. Na época me questionaram essa escolha, visto que as pessoas do campo vivem uma vida muito mais tranquila. Aí que mora um grande erro, ao achar que no espaço rural não há conflitos. Pelo contrário, existe tanto conflito lá quanto existe na área urbana. As mulheres do campo sofrem violência assim como as das áreas urbanas, e com o agravante de que elas não têm a quem recorrer. A mulher, no espaço rural, está ilhada dentro da própria família. Nem dá para ouvir os gritos, muito menos chamar a polícia. É violência velada, e ninguém observa isso.
Uma delegada de Linhares chegou a comentar que a própria delegacia é pouco equipada, com penas três pessoas trabalhando com essa área. Além disso, ela disse que em muitos casos de violência, a única opção é oferecer o abrigo. Mas essas mulheres têm medo de abandonar tudo e ir com os filhos para outro local… E depois? Como fica? Vou ter apoio de quem? E a maioria prefere voltar e continuar sendo violentada, em silêncio. Isso é muito grave!
Outro exemplo– que é até resultado da minha tese de doutorado – é que muitas mulheres querem ter acesso a tecnologias e esse direito é negado a elas, pela própria sociedade. Porque qualquer curso que é oferecido, ou evento que é realizado, elas são excluídas, não são consideradas como agricultoras ou o marido não permite sua participação. O acesso ao Pronaf Mulher, por exemplo, criado para atender às necessidades de financiamento de atividades de interesse da mulher, geralmente quem acessa é o homem, usando o nome da mulher. As mulheres apenas assinam os documentos, sem poder participar do processo de gestão e nem usufruir do direito de usar a renda gerada pela atividade financiada por elas. Mais uma forma, muito séria, de violência, comum no espaço rural. Além disso, elas ainda são restringidas à invisibilidade do espaço doméstico, sempre ocupando funções não remuneradas, como as tarefas de casa e do entorno.
A – Muitas violências que nem física, são. Correto?
Muitos enxergam só a violência física, o espancamento. Mas há muitas outras formas de violência. A lei Maria da Penha traz essas questões, apontando que violência não se restringe apenas a física ou a sexual. Também é violência contra a mulher impedir que ela saia de casa, controlar a roupa que ela veste, limitar seu espaço apenas ao doméstico, não permitir que ela se realize profissionalmente… Tudo isso também é violência.
Também é importante frisar que não há motivo ou causa que justifique a violência. “Ele bateu nela porque bebeu muito”. Como se a agressão fosse mera casualidade. Não! O homem que agrediu é violento. A bebida apenas contribuiu para ele expressar sua violência, que vem de uma estrutura social machista e que entende a mulher como subordinada ao homem e, dessa forma, é obrigada a passar por isso. Todo esse processo de posse e de dominação é violência, incluindo a emocional, a relação abusiva, que impede a mulher de se ver livre dessa situação.
É importante falar de violência contra mulheres para que elas percebam que estão sendo vítimas de violência e, assim, consigam buscar ajuda. O primeiro passo é reconhecer que sofre violência para, assim, buscar ajuda.
A – Nosso Estado se encontra, há anos, entre os que mais matam mulheres. Como podemos mudar essa realidade?
A.S. – A principal forma de mudança é pela redução das desigualdades de gênero. Enquanto houver esse tipo de relação social, e essa disparidade nos gêneros, não será possível alcançar uma mudança efetiva. A gente precisa envolver diversos setores da sociedade. Para se garantir o direito básico de se viver sem violência também é preciso mudar desde a educação em casa e na escola, por exemplo, com as crianças. É fundamental que essas crianças aprendam, desde cedo, sobre as desigualdades de gênero, para que, assim, a gente comece a preparar cidadãos que lutem contra essas desigualdades no futuro.
O enfrentamento precisa partir do rompimento com os padrões machistas da sociedade, porque o machismo é estrutural. Só rompendo com esse pensamento, com essa ideia de dominação masculina, será possível pensar na eliminação da violência contra a mulher. E essa desigualdade precisa ser rompida dentro das instituições, das igrejas, das escolas, da sociedade como um todo. É buscar por igualdade econômica, política e social entre mulheres e homens, para que a violência seja reduzida.
A – Quais os maiores desafios que ainda impedem o avanço de políticas de defesa das mulheres e de garantia de direitos?
A.S. – Garantir que as mulheres não sofram a violência é uma garantia de direitos humanos. A questão é que as mulheres sofrem violência pelo simples fato de serem mulheres. O curioso é que essa ideia da mulher ser subordinada ao homem também traz a ideia de que o homem protegeria a mulher. Ou seja, é a defesa do lar enquanto local de proteção. Mas é dentro desse lar que mais acontecem os casos de violência doméstica. Veja bem: o homem que seria o protetor dessa mulher é o homem que, na verdade, é o agressor. O que seria o local mais seguro é onde ela sofre a violência. E muitas vezes é uma violência velada, invisível aos olhos da sociedade.
Há, ainda, o desconhecimento desses vários tipos de violência, como a psicológica ou as relações abusivas e de controle, e que muitas mulheres, por não conhecer, não denunciam. Nas estatísticas gerais, de segurança, o homem sofre muito mais violência que a mulher. Fato! Mas a diferença é que a violência doméstica, a que acontece dentro de casa, quem sofre é a mulher. Para piorar, é uma violência velada, não denunciada e que, portanto, não entra nas estatísticas. Por isso que as estatísticas nacionais mostram apenas uma pequena fração do total de violência que as mulheres são submetidas diariamente.
Outro desafio está no sistema de saúde, que atende a muitas mulheres, vítimas de agressão doméstica, mas que não dão andamento aos casos junto à polícia, via notificação, e é importante que avancemos nessa questão. Também é de extrema importância a existência de delegacias especializadas no atendimento à mulher, com profissionais mulheres para dar mais segurança às vítimas, e com capacidade para fazer isso da forma correta.
Ainda precisamos pensar em formas mais efetivas para ajudar as mulheres a saírem desse ciclo de violência, que não seja somente o abrigo, visto que essa condição, a do abrigo, acaba obrigando a mulher a abandonar seu lar e se tornar “presa” em outra casa para proteger a sua vida e a de seus filhos. As medidas contra a violência precisam ser mais severas e ágeis, até porque quem precisa ser cerceado da liberdade é o homem, não a mulher. No abrigo ela se mantém privada de sua liberdade enquanto o homem, violento, permanece solto. É preciso prender o homem, de imediato, logo após a denúncia; e dar condições para que as mulheres se sintam mais seguras para poderem notificar os casos de violência.
A – Qual mensagem gostaria de passar a todos os associados e servidores do Incaper no dia de hoje?
A.S. – Eu gostaria que todos e todas nós, servidores e servidoras do Incaper, buscássemos informações sobre as relações de gênero, sobre o que é gênero, e, assim, tentar compreender essa desigualdade que existe em toda a sociedade, dentro de nossas famílias e dentro da nossa instituição. Buscar, como pessoas inteligentes e racionais que somos, romper com esse padrão desigual, indo atrás da igualdade entre as mulheres e os homens dentro da Assin e dentro do Incaper; em diferentes áreas, setores e funções, para que possamos ter uma sociedade mais justa.