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Carrinho

Mulheres e políticas públicas no meio rural

Por 10 de março de 2014Outras Notícias Assin

Autora: Jacinta Cristiana Barbosa*

 “Não se nasce mulher, se torna mulher”. 

 (Simone de Beauvoir)

Mulheres e homens têm sido resultado de uma construção social, histórica caracterizada pela dualidade entre os sexos.  Há uma divisão hierárquica em dois mundos que vem definindo o lugar dos sujeitos na sociedade, o lugar de mulheres e o lugar de homens, o que determina a função de ambos, ou seja, estabelece os saberes/fazeres de mulheres e saberes/fazeres de homens a partir das diferenças entre os sexos, aliadas ao que é ser mulher e ser homem do ponto de vista biológico.  

O universo do mundo privado é, desde a infância, cultivado para a ‘alma feminina’, por meio das brincadeiras, do lúdico, enquanto o universo público, também inserido nas atividades lúdicas da infância, é destinado à construção do ser masculino. De um lado, temos o “mundo rosa das meninas e de outro, o mundo azul dos meninos”. Meninas brincam com bonecas/casinhas em casa- espaço privado, enquanto meninos brincam com bolas/ carrinhos nas ruas- espaço público”.  Essa construção do ser mulher e ser homem tem sido naturalizada ao longo dos tempos e sempre de forma preconceituosa, discriminatória e negativizada para o ser mulher. Tem sido assim, em diferentes contextos, seja urbano ou rural, seja com e entre a população rural que trabalhamos, seja entre nós profissionais que atuamos nas ações de desenvolvimento rural. 

Ainda vivenciamos os reflexos da dualidade entre os sexos, da dualidade entre rural e urbano. O que nos leva a pensar no contexto das desigualdades, principalmente regionais e entre rural e urbano, que se somam às desigualdades específicas de gênero, especialmente o trabalho invisível, identificado, em geral, com as tarefas do lar, o que reforça a invisibilidade que cerca a percepção sobre o papel feminino na agricultura familiar (HEREDIA, s.d.).  Por isso, é preciso problematizar alguns conceitos que permeiam o mundo rural, que estão naturalizados em algumas políticas publicas, em muitas propostas de desenvolvimento rural, enfim no nosso cotidiano de trabalho: o que é produtivo?  Por que o trabalho doméstico não é mensurado como produtivo? Por que as atividades rurais não agrícolas muitas vezes não são percebidas como produtivas? Por que o trabalho das mulheres nas atividades agrícolas ou nas atividades não agrícolas, ainda é identificado como ajuda ou como ação complementar?  Por que o trabalho feminino ainda continua na invisibilidade? 

Sabemos que não é fácil desconstruir algo tão naturalizado, mas é possível, afinal aquilo que se constrói pode ser desconstruído. Sujeitos sociais são resultados de uma construção social e não de um determinismo biológico. Outra sociedade está sendo construída a partir de diversos olhares, de movimentos sociais que permanecem problematizando, lutando por relações de gênero mais igualitárias, por equidade de gênero no quotidiano familiar, nos novos arranjos familiares, nas políticas públicas nas relações de trabalho, seja no setor público ou privado, em diversos segmentos como na área social, de saúde, educação, esporte entre outros.

Enfim, lutando pelo direito a ter direitos, sobretudo, pelos direitos das mulheres que historicamente, ficaram à margem quanto ao acesso aos direitos de cidadania.  Atualmente, nos deparamos com políticas públicas, programas, projetos que têm como condicionantes a equidade de gênero ou pelo menos uma determinada porcentagem de beneficiárias mulheres, seja em âmbito rural ou urbano. O que podemos identificar como uma conquista do público feminino.  Em se tra tando do mundo rural, podemos citar como exemplo o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), que recentemente estabeleceu o mínimo de 40% da proposta, tem que ter como beneficiárias as mulheres da agricultura familiar. No município de Castelo, estamos implementando um projeto de comercialização da agricultura familiar via PAA que segue esse critério.  A partir dessa proposta, as mulheres passaram a ter seus nomes incluídos no bloco de notas, ainda denominado talão do produtor. 

O contrato entre MDA (Ministério de Desenvolvimento Agrário) e Incaper, referente a ATER na promoção da agricultura sustentável de base familiar também tem como requisito a participação de 30 % de público feminino. Além disso, a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural- PNATER tem como uma das diretrizes a diversidade e equidade de gênero visando a inserção das mulheres trabalhadoras rurais, nas ações governamentais de ATER. 

É importante observar as transformações nas relações de gênero no meio rural.  Algumas atividades, como a produção de leite e outros derivados, definida como tipicamente femininas, à medida que passam do âmbito privado/ doméstico para o âmbito público/ mercado, sendo valorizadas economicamente, passam a agregar também o trabalho masculino. Em Castelo, temos exemplos significativos em que a agroindústria de queijos e outros derivados passou a ser a fonte de renda da família com participação do trabalho feminino e masculino no processamento e comercialização. Temos outro caso, interessante, uma agroindústria de pães e biscoitos que passou a ser a fonte de renda principal da família, com participação masculina em período integral, e participação feminina em meio período, porque a mulher atua em outra atividade fora do âmbito doméstico, além das atribuições de cuidado com a casa e com os filhos. 

Embora as mulheres, a cada dia conquistam mais os espaços públicos, ainda continuam sendo as principais responsáveis pelas atividades domésticas. Quando tais atividades faziam parte das ações de segurança alimentar e saúde da família não eram percebidas e nem mensuradas economicamente. Estamos num processo de mudanças nesse sentido também. Algumas políticas públicas têm como foco a segurança alimentar visando à valorização e resgate dessas atividades.  Além das propostas dos movimentos sociais, como a Economia Solidária e o comércio justo, que têm contribuído com essa temática.

O rural passa por um momento de conquistas, de agregação de valor, de percepção da gama de atividades produtivas que vão além da produção agrícola, de valorização e visibilidade do papel da mulher nas atividades rurais, sejam elas estritamente agrícolas ou não. Já temos outro olhar sobre o rural, estamos no processo de desconstrução da dicotomia rural x urbano e passamos a pensar e agir no contexto das ruralidadeS, dos campos de possibilidades que temos nesse universo.  Se por um lado, é notória a importância das políticas públicas específicas para as mulheres, porque valorizam as atividades historicamente desenvolvidas por elas e, assim contribuem para a emancipação feminina, principalmente das trabalhadoras rurais que muito contribuem economicamente na produção agrícola e não agrícola. Por outro lado, tais políticas públicas, ao utilizarem essas características tidas como específicas de mulheres, podem se tornar fatores limitantes na luta contra a invisibilidade do trabalho feminino e do trabalho doméstico na agricultura familiar, à medida que reifica o mundo do trabalho na esfera pública, e assim o trabalho doméstico permanece na invisibilidade do mundo privado como não-trabalho ( BARBOSA, 2007).

Nesse sentido, os movimentos sociais continuam tendo papel fundamental na correção de rumos das políticas e na garantia de efetivação do acesso das mulheres aos direitos conquistados, assim como nas mudanças culturais e de autopercepção do lugar das mulheres, das mulheres trabalhadoras rurais como atores sociais e políticos.  

 

Jacinta Cristiana Barbosa*

Economista Doméstico-UFV/ 

MSc em Extensão Rural-UFV 

Especialista em Educação do Campo-UFES 

Agente de Extensão em Desenvolvimento Rural

Incaper (ELDR de Castelo)

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BARBOSA, Jacinta Cristiana. Um olhar sobre o uso da Nomeação Trabalhadora Rural como categoria Política. OIKOS, Viçosa, V. 18, N.2, P.99- 113, 2007. 

 

HEREDIA, Beatriz Maria Alásia de; CINTRÃO, Rosângela Pezza. Gênero e acesso a políticas públicas no meio rural brasileiro. In: O progresso das mulheres no Brasil. Disponível em: <www .mulheresnobrasil.org.br>. Acesso em: 18 j ul. 2007.

 

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