
No último dia 20 de outubro, nosso colega Adolfo Brás Sunderhus participou de uma live cujo assunto foi a Ater Digital. Diante de tal convite, ele organizou seus pensamentos e nos presenteou com dois textos que debatem o tema.
Este é o primeiro deles. O segundo será publicado nos próximos dias. Os dois falam sobre a Ater Digital, com a perspectiva de concepções, experiências e propostas no contexto atual.
Boa leitura!
“(…) cure-se com os beijos que o vento te dá e os abraços da chuva. Fique forte com os pés descalços no chão e com tudo que vem dele. Seja cada dia mais inteligente ouvindo sua intuição… Pule, dance, cante, para que você viva mais feliz. Cure-se a si mesmo…, e lembre-se sempre… você é o remédio.”
(Maria Sabina, curandeira e poetisa mexicana)
A agricultura acompanha os ciclos da natureza: semente, plantio, germinação, crescimento, florescimento, amadurecimento, produção, colheita, sementes… Um ciclo que se completa, tendo a vida e as pessoas como seu elemento principal.
Sendo esta premissa verdadeira, nada certamente substituirá o olhar atento e crítico do(a) extensionista, que junto com o olhar, com o saber e com a experiência dos(as) agricultores(as) familiares, representa o sucesso para a sustentabilidade da unidade de produção familiar em seu diversificado e multifuncional desenho/arranjo produtivo.
A linha histórica da extensão rural apresenta metodologias que proporcionaram mudanças de comportamentos para agricultura e para todos e todas que dela vivem. Em sua natureza individual, coletiva e de massa, “trabalhou” a difusão do conhecimento com foco no produto e no seu lucro e não nas pessoas; na sua cultura, no seu saber e, muito pouco, na preservação dos recursos naturais e dos ecossistemas de produção. Políticas públicas “renovadoras para uma nova agricultura” foram construídas: crédito rural, insumos modernos – adubos químicos, venenos e mecanização do solo. Todos ditos elementos de transformação pela “revolução verde”.
Hoje vivemos o momento digital. Algo ruim? Um inimigo? Já temos uma história recente, na educação, que mostra seus resultados. Penso que quem trabalha a ferramenta digital para roça tem que sentir toda sua realidade e vivenciá-la. Sentir o que nos fala Maria Sabina, Ana Primavessi, Carporal, Sebastião Pinheiro, Papa Francisco, dentre outros(as). Sem conhecer o cheiro da terra, o poder da semente e das pessoas não conseguirá entender e nem alcançar aqueles(as) que mais precisam. O ser humano não pode esquecer seus valores, sua identidade e seu pertencimento à terra, nem sua ligação direta com a natureza e, de forma alguma, deixar ou se negar a ser o próprio remédio para suas doenças.
Em 2019 a ONU alertou: “o setor agrícola passará por uma revolução digital que será mais transformadora e virá por uma tecnologia que causará efeitos de mudanças e ruptura nos padrões e modelos estabelecidos, rompendo com paradigmas e criando soluções inovadoras para melhorar e transformar a sua vida e de outras pessoas”.
Estamos diante desse alerta, “a era digital” impõe transformações e micro revoluções tecnológicas, “implementando novidades” em todos os setores, inclusive na extensão rural e na agricultura. É possível? Será que conseguimos levar a terra, a roça e o roçado com todas as suas diversidades e relações para dentro de um computador, transformando-o em um sistema alfa-numérico?
Divagando, continuo escrevendo… Computador sente cheiro da terra? Sabe o ponto de maturação da semente? Com toda certeza pode dar a proximidade, mas nunca a realidade do momento efetivo da situação. Portanto, o momento digital para extensão rural certamente que é importante. Não podemos ir contra o desenvolvimento de uma sociedade: temos a telemedicina, as videoconferências, entre outros. Nada disso exclui o toque do médico no paciente, o entendimento in loco da doença. Nada disso exclui ouvir uma testemunha (advocacia) olho a olho. O trabalhador e a trabalhadora da extensão rural pode estar a dezenas/centenas de quilômetros de um(a) agricultor(a) que pode mostrar por celular “uma larva-doença”, mas não a visão holística e as causas que levaram a esta situação, o que pode levar a uma tomada de decisão com erros. Talvez para um atendimento rápido, imediato e de rotina, sim. Mas a agricultura que produz alimento sadio para atender ao consumo interno com segurança alimentar e só isso? Rotina?
Extensão rural é fundamentada em uma ação de diálogo entre conhecimentos e saberes compartilhados, problematizados de forma participativa entre extensionistas e agricultores(as) e sua família, sendo esses últimos protagonistas, donos(as) dessa história, do seu presente e do futuro de todos e todas. Certamente essa “coisa” chamada extensão rural não pode simplesmente ser levada para lá ou para cá, ou ser uma “vídeo chamada”, ou reduzida a uma foto e a uma “receita pronta” enviada por WhatsApp. Certamente isso não é Extensão Rural.
E se assim o for, desrespeita-se o(a) agricultor(a), o(a) extensionista e toda a sociedade, pois o produto-alimento, fruto desta ação pública, chegará a mesa das famílias da cidade. E como chegará? De quem será a culpa do erro quando existir? Da Ater digital? Do(a) agricultor(a)? Do(a) extensionista? Porque, certamente, nunca será daqueles(as) que pensaram essa política pública unilateralmente.
A proposta da Ater Digital do desgoverno federal ouviu a quem? Levou em conta toda construção coletiva de políticas públicas anteriores para Ater e para agricultura familiar (conferências territoriais, estaduais e nacional – CONDRAF)? Ou se instala mantendo a política de interrupção e negação do protagonismo dos movimentos sociais dos povos da terra, da floresta, das águas e das comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas? Esse momento digital seria, sim, saudável e oportuno, se assim o fosse.
A Ater Digital, em sua “ação transformadora e revolucionária”, mais uma vez vem com a velha promessa: “mais eficiência”, “mais produção”, “mais lucro” e se insere de vez no discurso “do agro que é pop e etc”. E já se embala e se fortalece em um “modelo de agricultura” que mais uma vez busca abrir vantagem e se sobrepor à agricultura familiar. O desafio é saber como esse impacto será para a Extensão Rural e para todos e todas que vivem na roça.
Resta saber se a extensão rural e os(as) extensionistas estão preparados(as). O agricultor e a agricultora serão e estão sendo protagonista na construção desse modelo, ou mais uma vez estarão sujeitos a essa “novidade do mercado”? Ao que parece, estamos revivendo com a Ater Digital uma ferramenta difusora; diria que revestida de uma grande suspeita de ser mais uma vez excluidora, aumentando as desigualdades já tão fortemente existentes.
É fato que o acesso à internet aumentou entre 2008 e 2018, tanto no meio rural quanto nas áreas urbanas do Brasil, mas essa desigualdade entre roça e cidade se ampliou. Inclusive o acesso e por uma série de motivos: por ser caro; pelas pessoas não saberem usar, em especial os(as) agricultores(as) mais idosos; e por não terem acesso onde moram. Sem contar que é uma ferramenta essencialmente individual.
A Ater Digital está em pleno crescimento, pois novos instrumentos e ferramentas tecnológicas são pensadas e produzidas, dia a dia, para atender à “realidade” da agricultura e daquele(a) agricultor(a) que tem recursos financeiros suficientes para tê-los.
Texto de Adolfo Brás Sunderhus.
Engenheiro Agrônomo, extensionista aposentado do Incaper e operário da terra. Aprendendo com as experiências e práticas dos povos da terra da floresta e das águas.